Caxias do Sul - o dia da inauguração
da estação
(1/6/1910)
Autor: GILBERTO BLUME
gilberto.blume@pioneiro.com.br
Cessão: Flavio Cavalcanti
CAXIAS 1º DE JUNHO DE
1910
Há 100 anos, o esperado trem chegava a Caxias, abrindo uma era de prosperidade
e desenvolvimento
Caxias do Sul - Embora fosse quarta-feira, Caxias do Sul vestiu trajes dominicais
naquele 1º de junho de 1910. Há dias os moradores do município, cujo sonho era
ser cidade, preparavam vestidos, fatiotas e chapéus, especialmente chapéus,
pois o que levavam na cabeça dava fé de que estavam afinados com a moda europeia.
O lugarejo também estava há dias sendo enfeitado. O objetivo era nobilíssimo:
recepcionar o trem, marcado para apitar na recém-construída Estação Férrea às
15h40min. Ninguém em sã consciência deixaria de comparecer ao evento. Com efeito,
não há registro de que alguém tenha arrumado programa melhor.
Ao despertar em alvorada festiva com o estrondo de morteiros e foguetes, os
caxienses não podiam imaginar que na noite seguinte dormiriam muito mais que
abençoados pela estrada de ferro. A Júlio de Castilhos amanheceu empiriquitada
como poucas vezes se viu. A então incipiente avenida foi encimada por arcos
e guirlandas floridas. Por sob os arcos e por sobre a terra batida desfilaria
a comitiva que recepcionaria o trem. O grupo de notáveis caxienses saiu da Praça
Dante Alighieri rumo a São Pelegrino, então um lugarejo quase desabitado. A
trilha sonora era assinada pelas bandas Independente e Santa Cecília.
A população que se espremia na Praça Dante também desceu à estação, admirada
com a arquitetura do prédio da gare - coisa dos belgas da Compagnie Auxiliaire
des Chemins de Fer au Brésil. Veio gente de todas léguas e linhas, inclusive
muitos forasteiros. O atual Largo de São Pelegrino ficou congestionado de cavalos
e mulas. Os animais descansavam ali da viagem e recuperavam a energia bebendo
em enorme cocho abastecido por uma fonte. Os colonos e as colonas não faziam
feia figura. Como de hábito ao visitar a vila, saiam das propriedades calçando
tamancas, botas e vestindo os andrajos da roça.
Surgiam na vila esplendorosos para desfrutar a rigor as delícias urbanas. A
transformação se dava no caminho. O mato cerrado virava providencial closet
onde a roupa surrada era trocada pela roupa de missa. As peças da roça seguiam
viagem junto, guardadas no fundo dos cestões de vime carregados pelos animais.
A criançada viajava aboletada nos mesmos cestos. A manobra na mata era absolutamente
necessária para resguardar o mínimo de vaidade. Os colonos não se rebaixariam
à vexatória exibição pública de uma bainha suja na lama dos grotões, por exemplo.
Na volta para casa, a mata era novamente frequentada, agora para destrocar a
roupa. Para quem o luxo se resumia a duas, três mudas de roupa social, proteger
o chapéu de domingo era mais que vital. Os caxienses de antanho tinham prática
nesses improvisos. A Festa de Santa Tereza, dia 15 de outubro, era o ímã que
atraia os colonos para a vila, anualmente.
A regra era comparecer impecável, não importa a que sacrifícios. Finalmente
os relógios de bolso marcaram 15h40min. A Estação Férrea estava apinhada. Calcula-se
que aos 4 mil habitantes da área urbana foram acrescidos alguns milhares de
visitantes de fora. O trem trouxe 200 convidados, gente na mais alta conta nos
meios políticos, industriais e econômicos do Rio Grande do Sul. O governador
Carlos Barbosa não pôde comparecer devido a uma doença. Carlos Barbosa, se verá
adiante, horas mais tarde proporcionaria enorme surpresa, mesmo acamado em Porto
Alegre. Por lapsos documentais, não há certeza se os passageiros forasteiros
vestiam o guarda pó à época fornecido pelas empresas ferroviárias. Explica-se:
o guarda pó era proteção segura contra as faíscas lançadas pela locomotiva a
carvão. Como a fornalha ficava à frente da composição, tudo o que vinha atrás
corria risco de ser chamuscado.
Até janelas abertas eram um perigo. Com ou sem guarda pós, os visitantes agitaram
lenços brancos ao se aproximar da estação. A resposta dos nativos foram palmas,
gritos, urras e uma salva de 21 tiros de canhão, ápice precedido pela execução
de hinos, rezas e foguetórios. Consta que as forças policiais enfrentaram alguma
dificuldade para conter a turba disposta a invadir os trilhos ainda virgens
e as dependências da gare, espaço nobre destinado às autoridades, naturalmente.
O trem chegou espalhafatoso, apitando solene. Era tudo o que todos ali esperavam.
"O dia que chegou o trem, meu me Deus do céu! Parou tudo! As portas abertas,
escancaradas, todos davam vivas, largavam foguetes.
Na estação tinha bandeirinhas, a banda de música esperava as autoridades. O
trem foi uma grande coisa para Caxias", relatou em 2 de abril de 1985 Graciema
Paternoster Pieruccini (1892-1987) ao Banco de Memória do Arquivo Histórico
Municipal João Spadari Adami. Um só fotógrafo registrou a chegada do trem (na
página anterior). Domingos Mancuso capturou a imagem em primitivos negativos
de vidro. O feito entrou para a história. Duas horas após o clic, um clássico
da fotografia caxiense era exposto no Café Marconi. Ninguém explica como Mancuso
conseguiu exibir seu troféu em exíguas duas horas. A elaboração de um dos discursos
proferidos ao longo do dia foi confiada ao alfaiate Rodolpho Braghirolli, comerciante
de tecidos e chapéus instalado em prédio próprio na Avenida Júlio. Braghirolli
representava a Associação dos Comerciantes, embrião da atual Câmara da Indústria,
Comércio e Serviços, a CIC.
A Associação dos Comerciantes reunia a nata de Caxias, negociantes que enriqueciam
a olhos vistos e proporcionavam, com o capital acumulado, o surgimento da indústria.
Se tem alguém que pode, legitimamente, reivindicar os louros pela chegada do
trem, esse alguém são os comerciantes, justamente pela sede de desenvolvimento
que faziam questão de exibir. Parênteses: em 1907, os comerciantes conseguiram
trazer o presidente da Província, Júlio de Castilhos, para verificar in loco
os progressos da vila. A estratégia funcionou. Três anos depois, o trem apitava
em Caxias. Há, contudo, passagens que o tempo, combinado com alguma displicência
com a coisa pública, apagou para sempre.
Não há registros precisos sobre os serviços oferecidos à multidão que compareceu
à sede naquele 1° de junho. Na falta de banheiros públicos ou químicos, por
exemplo, é bem provável que as necessidades orgânicas de tanta gente eram satisfeitas
mediante favores. Praticamente todas as casas da época possuíam patentes de
madeira municiadas de fossas no fundo do quintal. Diante de tamanho acontecimento
social, imagina-se que ninguém negaria a patente a um visitante apertado. Havia,
claro, os banheiros de hotéis e pensões. Os leitos estavam todos ocupados. Os
estabelecimentos públicos e as raras casas que possuíam banheiros internos eram
atendidos por cabungueiros, homens que carregavam as fezes em toneis até um
depósito perto do atual Estádio Centenário. Também não há registros sobre onde
e o que aquele povo todo comeu naquela dia. É fato, contudo, que nos campos
perto da estação foram abatidas cinco vacas.
A carne foi servida assada na brasa, nosso atual churrasco. Cinco vacas, porém,
devem ter sido insuficientes para saciar a multidão. Caxias vivia a fase áurea
dos piqueniques. Piquenique era moda. Portanto, não é de todo inconsequente
imaginar imigrantes e descendentes de imigrantes se refestelando com polenta
e galeto à sombra de uma araucária fincada em plena área central. O programa
era perfeito. A quarta-feira ensolarada tinha música, orações de agradecimento,
festejos e vivas para a era que o trem inaugurava. "A tarde foi aproveitada,
por muitos excursionistas, em passeios, a carro, pelas ruas da villa e arredores.
Á noite, era feérico o aspecto das ruas centraes, profusamente ílluminadas a
lanternas venezianas, ostentando muitos prédios as respectivas fachadas ílluminadas
a gaz acetylene", descreveu o jornal O Brazil.
Contudo, outra surpresa estava reservada para aquele dia. Dois clubes disputavam
os convivas. O Aliança e o Juvenil preparavam bailes para coroar com pompa a
chegada do trem. Tudo ia muito bem, os brindes se sucediam, os casais rodopiavam
no salão iluminado por lamparinas a querosene. De repente, a banda silenciou
no Juvenil, clube com apenas cinco anos e à época estabelecido onde hoje é o
Hospital Pompéia. O presidente do clube, Américo Ribeiro Mendes, pediu atenção
e leu para centenas de boquiabertos convivas o telegrama de 32 palavras que
acabara de chegar. O telegrama, despachado de Porto Alegre às 19h25min, foi
recebido em Caxias às 22h55min. O conteúdo: "Congratulando-me vivamente convosco,
vossos municipes grande melhoramento estrada de ferro, comunico vos accedi appello
essa população lavrando Decreto hoje, que eleva essa villa à cathegoria de cidade.
Cordiaes saudações" Carlos Barbosa Terminada a leitura, nova rodada festiva
irrompeu no salão e logo vazou para fora do clube. "A noticia immediatamente
circulou por todos os recantos da cidade, onde havia diversões, ouvindo-se de
toda parte os ecos de acclamações e o espocar de centenares de foguetes" descreveu
o mesmo O Brazil.
A quinta-feira 2 de junho amanheceu menos barulhenta que a quarta, afinal, há
100 anos igualmente ninguém era de ferro. Apesar dos festejos terem varado a
madrugada, por volta das 10h a Praça Dante já fervilhava. Eram as autoridades
preparando a marcha para descer a Júlio de Castilhos e embarcar no trem de volta
a Porto Alegre. A partida se deu às 11h, novamente com foguetório, discursos,
banda e lencinhos ao vento. Era ali, naquele momento, que a novíssima cidade
de Caxias punha os pés para sempre rumo ao alto desenvolvimento.
Relatos de pessoas que viveram aquele 1° de junho:
- Na Caxias de 1910 havia: Cerca de 32 mil habitantes. Quatro mil moravam na
área urbana.
- O então município tinha 8 mil prédios (7 mil de madeira e mil de tijolos e
pedras). Havia 150 lojas de tecidos, miudezas e louças, 160 alambiques, 10 engenhos
para fabricar graspa e aguardente, 71 moinhos, 15 curtumes, 38 serrarias, 173
oficinas diversas, seis olarias, uma fábrica de pólvora e duas de inseticidas.
- Na vila havia 50 casas comerciais, três farmácias, 10 padarias, duas confeitarias,
duas fabricas de moer café, duas de massas alimentícias, cinco cafés com oito
bilhares, quatro hotéis, uma pensão, varias casas de pasto, duas cervejarias,
três relojoarias, dois estúdios fotográficos, barbearias, engraxateria, um atelier
de escultura, uma livraria, duas oficinas de encadernação, uma tipografia, duas
metalúrgicas, quatro vinícolas.